O aumento da violência no campo tem a cara do golpe

O relatório  “Conflitos no Campo Brasil 2016” da T traz índices recordes e ainda mais preocupantes: aumentaram todos os tipos de conflito (maiores números dos últimos 10 anos, o de terra maior em 32 anos de documentação) e todas as formas de violência no campo em relação a 2015. Os assassinatos tiveram um aumento de 22%, menor índice de aumento em 2016, mas o maior número desde 2003. As agressões tiveram o maior índice de aumento: 206%

A violência é uma marca da trajetória do Brasil, 517 anos do “descobrimento” neste sábado, 22 de abril. Está nos momentos históricos e no cotidiano do povo, na cidade e no campo. A propalada “cordialidade” do tipo brasileiro tornou-se uma construção ideológica que impede de enfrentá-la. Há, por exemplo, um muito popular noticiário de violência urbana feito por uma imprensa especializada, apelidada “mundo cão”, de jornais (e telejornais) que, como se diz, “se espremer sai sangue”… Já a violência rural, mesmo sendo constante, aparece pouco, até quando excede padrões, em determinados períodos, como o atual. A crise ampla que vivemos, sobretudo política, marcada pelo golpe que foi o impedimento da Presidenta Dilma pelo Congresso, com apoio do Judiciário e da mídia empresarial, combina corrupção generalizada com retrocessos constitucionais e perda de direitos sociais e impacta e agrava a tradicional conflitividade agrária. Confirma-se a tese de que em anos de mudanças políticas, tanto à “esquerda” quanto à direita, recrudescem os conflitos no campo e sua violência característica.

Criada há 42 anos para apoiar os camponeses e camponesas vítimas da violência no campo, a Comissão Pastoral da Terra (T) mantém um Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, que coleta informações e publica um relatório anual desta violência, com dados estatísticos e análises. O deste ano – “Conflitos no Campo Brasil 2016” –  lançado na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília. A data, 17 de abril, lembra o Massacre de Eldorado dos Carajás, em que 21 trabalhadores rurais sem- terra foram mortos pela Polícia Militar do Pará em 1996. O relatório traz índices recordes e ainda mais preocupantes: aumentaram todos os tipos de conflito (maiores números dos últimos 10 anos, o de terra maior em 32 anos de documentação) e todas as formas de violência no campo em relação a 2015. Os assassinatos tiveram um aumento de 22%, menor índice de aumento em 2016, mas o maior número desde 2003. As agressões tiveram o maior índice de aumento: 206%.

Sob as sombras da violência

No texto analítico que escreveu para esta edição, Leonardo Boff aponta as “quatro sombras que pesam sobre nós e que originaram e originam a violência”. São elas o nosso ado colonial elitista e dependente da matriz; o genocídio indígena, que gerou o desrespeito e a discriminação social; a escravidão negra, “a mais nefasta de todas”, que estruturou a desigualdade social das maiores do mundo; e a capitalista Lei de Terras (1850), que excluiu os pobres e, preventivamente, os ex-escravos (Abolição, 1888) do o à terra e os entregou “ao arbítrio do grande latifúndio, submetidos a trabalhos sem garantias sociais”.

A terra sempre foi eixo do poder no Brasil, ainda hoje define quem tem e quem não tem o Estado a seu favor (ou contra). No momento atual crítico sem precedentes, ampliam-se e se aprofundam as consequências entrecruzadas destas sombras do ado. É o que significam os sucessivos golpes, culminados no impedimento da Presidenta Dilma e no “saco de maldades” sem fim, aberto pelo interino e ilegítimo Presidente Temer. Na verdade, já vinham de antes, a crise mundial chegando aqui, desfavorecendo as exportações de commodities, os “ajustes estruturais” da economia com impacto negativo nas políticas agrárias e agrícolas. Pam-se todas as políticas ainda mais a serviço dos processos reciclados de acumulação ampliada do capital globalizado, aos quais associam-se como sempre as oligarquias nacionais corruptas e corruptoras do Estado. Para tanto, impunha-se e se impõe afastar quaisquer resquícios de soberania político-econômica e social e subtrair representatividade popular e direitos constitucionais, no que poderia ser chamado de hiper-neoliberalismo.

No campo isto tem se traduzido em mais violência, privada e pública, contra as povos, comunidades e pessoas e seu modo de viver e se relacionar com os bens da terra. Agora não mais só a terra de lavrar e/ou extrair a sobrevivência e a soberania alimentar, mas também a que contêm e protege água, floresta, minério, vento, biodiversidade, que o mercado absoluto reclama como acumulação primitiva de capital.

Dados alarmantes

Os números de 2016 documentados pela T revelam em proporções até certo ponto inéditas nos últimos anos, essa exacerbação da violência rural de sempre. Na Apresentação do relatório, a Diretoria e a Coordenação Executiva Nacional da T apontam os seguintes dados principais:

– 61 assassinatos, mais de 5 por mês (entre as vítimas, 16 jovens de 15 a 29 anos, 01 adolescente e 06 mulheres). No quadro dos últimos 25 anos, número superior a esse só em 2003 [primeiro ano do governo Lula], com o registro de 73 assassinatos;

– 1.079 ocorrências de conflitos por terra (ações em que há algum tipo de violência – expulsão, despejo, assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, prisões etc.). É o número mais elevado nos 32 anos de registros da T;

– 1.295 no total do conjunto dos conflitos por terra (soma de ocorrências, ocupações/retomadas, acampamentos) – média de 3,8 conflitos por dia. Número mais elevado desde 2006;

– 172 conflitos pela água, número mais elevado desde quando a T iniciou o registro em separado destes conflitos em 2002;

– 1.536 conflitos no campo (soma de conflitos por terra, pela água e trabalhistas) – média de 4,2 conflitos por dia. Número mais elevado desde 2008.

As áreas de maior conflitividade continuam sendo as de expansão da fronteira, não só do carro-chefe agronegócio, mas também da mineração, dos projetos de energia (hidrelétricas, eólicas etc.) e de outras obras de infraestrutura, como as rodoviárias, ferroviárias, hídricas etc. Estão sobretudo na Amazônia e nos Cerrados. Os números revelam uma guerra não declarada, obscurecida pelo discurso do desenvolvimento, reduzido a crescimento econômico, que se impõe inquestionável como gerador de emprego e renda, bom para todos etc.

O desmatamento e as queimadas na Amazônia voltaram a crescer, e com eles a violência contra os povos da floresta. Lá ocorreram 57% dos conflitos, 54% das famílias envolvidas em conflitos por terra e 79% dos assassinatos (48). Quanto à área em disputa em 2016, a Amazônia Legal (inclui, além dos estados da região Norte, o Mato Grosso e parte do Maranhão) representou 96% do total do país, quase 23 milhões de hectares. Com apenas 12% da população brasileira, imagina-se a intensidade destes conflitos.

Já os Cerrados, com 14,9% da população rural do país, tiveram 24,1% do total das suas localidades envolvidas em conflitos, um índice de 1,67 (24,1 dividido por 14,9), o número destes sendo relativamente maior (67%) do que sua população. São dados do texto analítico dos conflitos na região, que consta no relatório, elaborado pelo Coletivo LEMTO-UFF (Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense). Nos Cerrados, o aumento da violência coincide com o início do Plano de Desenvolvimento Agropecuário do MATOPIBA, região que engloba a parte deste bioma dos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, com cerca de 73 milhões de hectares e 6 milhões de habitantes. Trata-se da metade do que resta dos Cerrados em pé, de crucial importância para o ciclo hidrológico e a recarga das principais bacias hidrográficas do continente sul-americano. Boa parte ainda preservada porque sob controle de povos e comunidades tradicionais. O Tocantins, estado todo dentro do MATOPIBA, teve o maior aumento dos conflitos por terra, 313%, de 24 em 2015 para 99 em 2016. O Maranhão, o mais conflagrado do país, 196 ocorrências.

Os ideólogos do agronegócio insistem em exaltar a importância maior da tecnologia e do conhecimento científico e a concomitante perda de importância da terra. Ao contrário, o texto citado do Coletivo LEMTO afirma que “é impossível a produção agrícola sem as condições metabólicas de produção-reprodução da vida – terra, água, fotossíntese-flora-fauna. Enfim, não se planta sem o a água, sem o ao Sol (à fotossíntese) e essa energia gratuita é ainda maior em países tropicais, o que, sem dúvida, ajuda a explicar a reprodução há mais de 500 anos desse bloco de poder de acumulação em sua subordinação voluntária ao sistema mundo capitalista moderno-colonial. Assim, concentração fundiária (latifúndio) implica não somente a concentração de uma área, mas também maior o à energia solar e a água.” E pela tradição que se recicla e se reproduz conforme as nuances históricas desta trajetória brasileira, a questão agrária e sua violência característica também se refaz, modernamente, para infelicidade camponesa e nacional, com seus reflexos nas cidades.

No período recente, têm sido os camponeses posseiros (possuem a terra sem título de propriedade) e os povos e comunidades tradicionais, em quase todas as regiões do país, as principais vítimas da violência rural. A partir de 2009, os dados relativos a eles ultraam os relativos aos sem-terra. Reflexo, por um lado, da confluência entre retrocessos na política agrária dos governos de coalizão do PT (redução à quase paralisação da reforma agrária e do reconhecimento das terras indígenas e territórios tradicionais) e o recuo das ocupações de terra e acampamentos de luta pela reforma agrária. Por outro lado, consequência do diversificado avanço recolonizado dos empreendimentos privados e públicos sobre os recursos naturais presentes nos territórios de posse imemorial destes povos e comunidades.

O golpe e os golpes no campo

Ao impedimento golpista da Presidenta Dilma em 31 de agosto de 2016, por um Congresso dos mais conservadores, com o apoio do Judiciário e da mídia, seguiu-se uma avalanche de ataques aos direitos dos pobres e da classe média, a população que trabalha, paga impostos e sustenta o Estado. Sete meses e meio depois, ao confirmarem-se as apressadas alterações legais em curso, inclusive na Constituição de 1988, chamada “Cidadã”, somadas às já sancionadas, estará desmontado o que restava de social no Estado brasileiro e reinará absoluta a plutocracia, em níveis semelhantes ao do período colonial. Fica a certeza de que o golpe foi engendrado justamente para isto, possível só por um governo ilegítimo, corrupto, sem votos e sem programa aprovado nas urnas. Dada a centralidade da terra (leia-se agronegócio e neo-extrativismo) para o poder, o impacto deste desmonte no campo tem sido devastador.

A publicação da T traz um estudo liderado pelo professor Marco Mitidiero Jr, da UFPB, que mostra, com base no monitoramento minucioso do comportamento legislativo e executivo (e judiciário, acrescentaríamos) no referente ao campo, a intensificação dos ataques aos direitos dos povos para beneficiar os interesses ruralistas, a partir do golpe de agosto. No centro, a Bancada Ruralista de 207 deputados e dois dos principais ministros – os ruralistas da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o “sojeiro” Blairo Maggi, e da Justiça, Omar Serraglio. Em 2016 foram 11 novos projetos e propostas de legislação e 29 Decretos-Leis, totalizando 40 ações contra os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas.

Na Apresentação do relatório consta uma síntese destes principais ataques, como se fosse um “programa de governo” consubstanciado:

– na série de Medidas Provisórias, Projetos de Lei, Propostas de Emendas Constitucionais e Decretos que afetam diretamente povos e comunidades do campo e na nomeação de pessoas para altos cargos abertamente contrárias aos direitos dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e de outras comunidades camponesas;

– na extinção de ministérios e autarquias que deviam se preocupar com os direitos humanos; e na diminuição de recursos e de pessoal para órgãos responsáveis por garantir algumas políticas sociais, como Funai, Incra, Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, e outros;

– em mandados judiciais que enquadraram os movimentos sociais (de modo mais explícito o MST) como organização criminosa nos termos da lei 12.850/2013, como se viu em Goiás;

– em procedimentos judiciais, como no seringal Capatará no Acre, em que o mandado de reintegração de posse de 2.000 hectares se estendeu para aproximadamente 7.000; e em outros casos na identificação policial de cada família expulsa ou despejada de áreas ocupadas;

– na atribuição às vítimas das agressões e violências a responsabilidade pelo conflito. Lideranças indígenas foram indiciadas judicialmente, no conflito em Caarapó, MS, onde um índio foi assassinado e outros cinco saíram feridos;

– na tentativa de desqualificação das vítimas. “[Os] trabalhadores são, em sua maioria, viciados em álcool e em drogas ilícitas, de modo que […] gastam todo o dinheiro do salário, perdem seus documentos e não voltam para o trabalho, quando não muito praticam crimes”, esta é uma ilustrativa sentença proferida, em 2016, por uma Juíza do Trabalho de Santa Catarina contra a atuação dos fiscais do trabalho que resgataram 156 vítimas em condições análogas a trabalho escravo;

– na polêmica em torno à divulgação da Lista Suja do Trabalho Escravo em que a preocupação maior é como proteger os responsáveis pela exploração do trabalho em condições análogas ao trabalho escravo, não as pessoas que sofrem a exploração.

Entre outros destacaríamos, dada a gravidade das consequências: o PL 4059/2012, da bancada ruralista com apoio do governo golpista, que trata da venda irrestrita de terras a estrangeiros; o substitutivo do deputado ruralista Mauro Pereira (PMDB/RS) ao PL 3729/04, que cria a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, praticamente retirando o ambiental do licenciamento, à semelhança do que fez o Código Florestal com as florestas; a privatização das águas, bem público essencial; a retirada da ANVISA e do IBAMA do controle sobre os agrotóxicos, dos quais a agricultura brasileira já é a maior consumidora mundial; e os cortes na Previdência Rural, que levará miséria ainda maior ao campo.

Soluções estão nas lutas

Difícil imaginar que as soluções para quadro tão tenebroso possam vir de quem é parte central dos problemas. Dizia Paulo Freire que quem inaugura a violência é quem violenta e que só os oprimidos têm futuro, porque almejam a liberdade, enquanto os opressores só tem a reprodução do seu presente de opressão. São premissas que nos levam a buscar as soluções para este quadro histórico e presentemente exasperado de conflitos agrários, entre os violentados do campo não entre os violentadores.

A despeito dos ideólogos do agronegócio para quem a questão agrária brasileira está resolvida pelas modernas empresas-latifúndios, com base na tecnologia e na média e grande propriedades, estruturalmente apoiadas pelo Estado, os dados apresentados pela T atestam a sua irresolução, reiteração e reciclagem em pleno século XXI. Atrás um imenso rastro de sangue.

Impõe-se ressignificada e revalorizada contemporaneamente a reforma agrária como solução, o que a T vem dizendo desde 2009 (“Por outra compreensão e ressignificação da reforma agrária”) e a CNBB desde 2013 (“A Igreja e a questão agrária no século XXI”). Ela continua como um instrumento nas mãos do Estado para a democratização sócio-político-econômica da terra e da nação brasileira, mas que se imponha pela força da sociedade, em torno dos movimentos populares de luta pela conquista e defesa da terra e dos territórios. E precisa agregar as dimensões não só distributiva e produtiva, mas também da soberania alimentar, do “cuidado da casa comum” (Papa Francisco) – frentes às crises ambiental, climática, hídrica e energética – e a dimensão étnico-cultural. Algo que depende de um projeto nacional que não temos mais, se já tivemos… É mais que urgente construí-lo, para sairmos da barafunda em que nos metemos/meteram.

Ao final do citado texto de Leonardo Boff no relatório, ele sugere algumas implicações desta reforma agrária: “(…) um programa de fortalecimento da agricultura familiar, orgânica e ecológica e dos assentamentos de reforma agrária; uma política de promoção de uma nova matriz científica e tecnológica; educação para o meio rural [do campo, diríamos]; uma política pública de crédito rural; associativismo e cooperativismo; rede de proteção social; soberania e segurança alimentar e especialmente desenvolver o bio-regionalismo aproveitando os bens e serviços de cada região, a fim de se garantir a sustentabilidade das populações aí residentes; por fim, a cultura e o lazer que conferem plenitude à vida”.

Com isto tem a ganhar todo o povo brasileiro, não apenas uma elite diminuta e predatória, que nunca se locupleta. Resgata-se a dignidade das vítimas e seus familiares, reconhece-se a importância da imensa população rural, bem maior do que dizem as enviesadas estatísticas oficiais, descomprimem-se as inseguras e inviáveis metrópoles, em tudo colaborando para o bem-estar e a paz no país e a sobrevivência da humanidade e do planeta.

* Ruben Siqueira é T Bahia e Coordenação Executiva Nacional da T, graduado em Filosofia e Pedagogia e Mestre em Ciências Sociais.

Fonte: T